segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Perdão



Antes sede uns para com os outros benignos, misericordiosos, perdoando-vos uns aos outros, como também Deus vos perdoou em Cristo. Efésios 4:32

"Seu pai saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou"
. Ouço esta expressão desde pequena, e embora desconheça sua origem sempre foi óbvio seu uso para ilustrar os casos de pais que abandonaram suas famílias e desapareceram no mundo. Seria cômico se não fosse trágico.

Quando eu era bem pequenininha, lembro do meu pai sentado à mesa fazendo o sinal da cruz e com a cabeça baixa, talvez orando. Ele, na época, era o típico patriarca, chefe de família. Minha mãe era do lar, com seus quatro filhos, os dois mais velhos em fase escolar. Lembro da postura rústica e disciplinadora dele; Não me recordo se suas ações eram justas ou injustas, era claro que eu não tinha discernimento para julgar. A medida da disciplina era controlada por nossa mãe, quando a mão pesava ela intervia.

Quando nos mudamos de São Paulo, e meus irmãos mais velhos cresceram e começaram a trabalhar, algo se perdeu pelo caminho. Meu pai se aposentou por problemas de audição – nunca entendi porquê – e perverteu seus costumes, se envolveu com política, amizades duvidosas, divorciou-se de minha mãe, e daí por diante não há nenhuma lembrança que valha a pena contar. As lembranças são tão escassas que eu nem sei quando ele sumiu de vez da nossa presença sem deixar rastros.

No último Dia dos Pais, vi nas redes sociais, em especial no Twitter, o tamanho do estrago que causa na vida das pessoas a ausência paterna quando somada à falta de fé em Deus e na tua Palavra. Centenas de mensagem repudiando a comemoração da data em vista do número de crianças que poderiam ficar “traumatizadas porque não tem pai”, pessoas amaldiçoando seus progenitores ausentes e repudiando aqueles que o tem próximo, ou que não nutrem nenhuma repulsa pela imagem deste.

Há uma geração que amaldiçoa a seu pai, e que não bendiz a sua mãe.
Há uma geração que é pura aos seus próprios olhos, mas que nunca foi lavada da sua imundícia.
Há uma geração cujos olhos são altivos, e as suas pálpebras são sempre levantadas.
Há uma geração cujos dentes são espadas, e cujas queixadas são facas, para consumirem da terra os aflitos, e os necessitados dentre os homens.

Provérbios 30:11-14

Bruce Anstey, no livro Provérbios - Sabedoria Divina para Nossa Senda Terrena, fala sobre os trechos que citei acima da seguinte forma: “os versículos 11-23 mostram que Agur tinha uma compreensão do verdadeiro caráter do mundo, e resumiu-o em quatro séries de quatro coisas. Cada série retrata um aspecto diferente do mundo e seus caminhos. Na primeira série, ele fala dos princípios morais encobertos que marcam os homens do mundo que se rebelam contra a autoridade dos pais (v. 11), justiça-própria (v. 12), orgulho (v. 13) e violência gananciosa (v. 14).”

Por mais que eu tenha lido toda aquelas mensagens da rede social com verdadeiro horror, um pouco de pena de algumas pessoas, e me sentindo fora daquela realidade, na verdade, uma semana depois, alguém me fez perceber o quanto aquilo tudo me afetou, e o quanto eu tinha em mim da mesma rejeição demonstrada ao extremo por aquelas pessoas que não possuem o filtro da fé para polir o próprio discurso. Minha justiça-própria e orgulho me impediam de falar do meu pai, a não ser de forma vaga para me defender do estigma de racista, ao dizer que ele era negro, ou afirmando que ele era baiano, para me defender de qualquer acusação de preconceito regional. Eu o condenei ao esquecimento, ao desprezo, a despreocupação total. Meu orgulho me levou à rejeição por qualquer coisa que lhe dissesse respeito ou lhe trouxesse à memória. Desde uma data (8), um mês (Fevereiro), um signo (Aquário), um lugar (Bahia), um ditado (“Uma andorinha só não faz verão”), um cargo político (vereador).

Na semana seguinte ao Dia dos Pais, me vi com inveja de uma menininha de 11 anos cujo pai – ausente – foi substituído pela presença paterna deste meu amigo com quem eu conversava por aplicativo neste dia. Depois de uma mensagem recalcada defendendo a paciência do meu amigo com a jovem, dizendo que por muito menos meu próprio pai tinha sumido do mapa, sua resposta imprevisível foi, “perdoar, nunca ouviu isso?”. Ora! Como assim? O assunto não era o meu pai, era o pai postiço da garotinha - ele! Como assim, eu o elogiei pela paciência e ganhei um sermão? Ora, ora, como assim, fui pega na minha hipocrisia?

Desde esse dia, fiquei numa angústia padrão quando tomo consciência de forma dolorosa de algo importante. Ignorar era minha válvula para não falar mal. Pela minha fé eu sabia que era errado fazer isso, mas em nada significava que eu não tinha sentimentos que me levassem a querer ir lá postar bobagens na web, eles estavam apenas adormecidos. Parecia menos mal descarregar toda minha raiva numa conversa informal, que passar vergonha na rede e virar même de feminista sem pai; aliás minha única manifestação foi comentando num perfil sobre isto, dizendo que eu não tinha pai presente, mas não era feminista, comunista e nem odiava homens. Mais uma vez usei meu pai para me defender de algo que eu não era. Um escudo sempre válido para proteger minha autoimagem, sendo que esta – a autoimagem – é exatamente o problema!

Perdoar, nunca ouvi isso? Sim, já ouvi. Deus nos perdoou por um mal infinitamente maior do que o que podemos causar uns aos outros. Deus entregou seu Filho Jesus Cristo para pagar na cruz pelos meus pecados em sinal do seu amor, e por isso hoje posso chamá-lo de Pai. O mesmo Pai do Céu que determinou antes de eu nascer que minha mãe se casaria com meu pai e deste DNA, que não poderia ser outro, nasceria eu. O mesmo Pai que me colocou nesta família para que aprendesse coisas que só os Seus desígnios sabem a razão. O mesmo Pai do céu que sabe onde está o meu pai terreno e o que se passa no coração dele e o preço que paga em razão de suas escolhas. O Pai do céu também sabe por onde anda o pai biológico da garotinha, e o que se passa no coração do pai postiço dela.

Meu pai não sumiu "por muito menos" como eu disse na mensagem, nem por muito mais, eu simplesmente não sei quais foram os seus motivos. Graças à intervenção inesperada deste meu amigo no assunto, me abrindo os olhos, hoje consegui fazer uma reflexão sincera sobre meu pai, e descobrir que a ausência de perdão era puro egoísmo para preservar uma imagem de alguém que não sou mais desde minha conversão. Eu não sou mais a filha abandonada pelo pai biológico, sou a filha de Deus Pai, alcançada pela obra do Senhor Jesus! E se as orações de meu pai à mesa eram sinceras, se ele a seu modo também crer no Filho de Deus, que seu sacrifício é suficiente para perdoar todos os nossos pecados, voltaremos a nos encontrar no céu, na casa do Pai onde há muitas moradas.

Revesti-vos, pois, como eleitos de Deus, santos e amados, de entranhas de misericórdia, de benignidade, humildade, mansidão, longanimidade;
Suportando-vos uns aos outros, e perdoando-vos uns aos outros, se alguém tiver queixa contra outro; assim como Cristo vos perdoou, assim fazei vós também.

Colossenses 3:12,13